2371. ‘E Disseram: Um vem para peregrinar’; que signifique os que têm uma outra doutrina e uma outra vida, é o que se vê pela significação de ‘peregrinar’, que é ser instruído e viver, por conseguinte, a doutrina e a vida de que se tratou (n. 1462, 2025). Aqui, o estado da igreja é descrito tal qual ele é por volta dos últimos tempos, quando não há mais fé porque não há mais caridade, isto é, que o bem da caridade, por se ter retirado inteiramente da vida, é também rejeitado da doutrina.
[2] Aqui não se trata dos que falsificam o bem da caridade explicando-o a seu favor não só por causa deles mesmos (a fim de serem os maiores e por causa dos bens do mundo, a fim de possui-los todos, e que se arrogam as dispensações das recompensas e corrompem assim o bem da caridade por diversos artifícios e por meios ilusórios), mas se trata dos que nada querem ouvir a respeito dos bens da caridade ou das boas obras, e que só se ocupam da fé separada desses bens, e isso, segundo este raciocínio: que só há o mal no homem e que o bem que vem dele é em si o mal e, por conseguinte, nada encerra a respeito da salvação, e que ninguém pode merecer o céu por algum bem, nem, em consequência, ser salvo por esse bem, mas que só se pode sê-lo pela fé, a partir da qual se reconhece o mérito do Senhor. Tal doutrina é o último tempo, quando a igreja começa a expirar, é essa doutrina que está em vigor, e que é ensinada com ardor e abraçada com aclamação.
[3] Mas daí se conclui que alguém pode ter uma vida má e uma fé boa. Isso é falso. É também falso que, porque no homem há apenas o mal, não pode haver nele o bem pelo Senhor, no qual, porque o Senhor está, está nele o céu, e o céu estando nele, a bem-aventurança e a felicidade nele estão; e finalmente, porque ninguém pode ter mérito por algum bem que não seja pelo Senhor um bem celeste, no qual o mérito é olhado como alguma coisa irregular [enorme] . Em um tal bem estão todos os anjos, em um tal bem estão todos os regenerados, em um tal bem estão todos os que percebem o prazer e até a bem-aventurança no bem mesmo, ou seja, estão na afeição do bem. O Senhor fala assim desse bem ou dessa caridade em Mateus:
“Ouvistes o que foi dito: Amarás ao teu próximo e ódio terás ao teu inimigo. Eu vos digo: [Amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem,] 37 fazei o bem aos que ódio vos têm, e orai pelos que vos ofendem e vos perseguem, para que sejais filhos do vosso Pai, Que [está] nos céus; ... pois se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? ... E se saudardes os vossos irmãos somente, que de mais fazeis, também os publicanos não fazem assim? [...] ” (5:43-48).
Em Lucas se diz a mesma coisa e se acrescenta:
“Fazei o bem e dai emprestado, nada daí esperando; então será grande a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo” (6:27-36);
[4] onde se descreve o bem que procede do Senhor e que é sem nenhum intuito da retribuição, por isso os que estão nesse bem são chamados os ‘filhos do Pai, Que está nos céus’ e os ‘filhos do Altíssimo’; e como o Senhor está nesse bem, a recompensa também n’Ele está. Em Lucas:
“Quando fizeres um jantar ou uma ceia, não chames os teus amigos, nem teus irmãos, nem os teus parentes, nem vizinhos ricos, para que talvez eles por sua vez não te chamem e que te seja em retribuição. Mas quando fizerdes um banque-te, chamai os pobres, os manetas, os cegos; então feliz serás, porque não têm com que te retribuir; [mas] será retribuído a ti na ressurreição dos mortos 38 ” (14:12-14);
O ‘jantar’, a ‘ceia’, o ‘banquete’, é o bem da caridade, no qual há coabitação do Senhor com o homem (n. 2341), por isso ela está descrita por esse modo, e se vê claramente que a retribuição está no bem mesmo, porque o Senhor está nesse bem, pois se diz que “a retribuição será recebida na ressurreição dos mortos”.
[5] Os que se aplicam a praticar o bem por si próprios porque o Senhor assim o ordenou, são os que enfim recebem esse bem e que, instruídos depois, reconhecem pela fé que todo bem procede do Senhor (n. 1712, 1937, 1947), e então neles há uma tal aversão pelo mérito deles próprios, que eles, quando somente pensam no mérito, se entristecem e percebem que a bem-aventurança e a felicidade diminuem em proporção neles.
[6] Não sucede, porém, o mesmo com os que não fazem o bem, mas levam a vida do mal ensinando e professando que a salvação está na fé separada; esses tais não sabem também que pode existir um tal bem, e o que é admirável é que esses, até na outra vida, como se me deu conhecer por uma experiência múltipla, querem, por boas obras, quaisquer que tenham sido, de que eles se relembram, ter merecido o céu, porque então eles começam a aprender que a salvação não está na fé separada da caridade; mas então eles são os de quem o Senhor fala em Mateus:
“Dirão a Mim nesse dia: Senhor, Senhor, pelo Teu nome não profetizamos? e pelo Teu nome não expulsamos os demônios? e no Teu nome não fizemos muitos milagres? Mas então lhes declararei: Não vos conheço, afastai-vos de Mim, [vós] que obrais a iniquidade” (7:22, 23).
Vê-se também entre os mesmos, que eles não prestaram atenção alguma a todas as instruções que o Senhor mesmo deu tantas vezes sobre o bem do amor e da caridade, mas que foram para eles como nuvens que passam acima da cabeça, ou como coisas vistas de noite; por exemplo, as instruções que se leem em Mateus (3:8, 9; 5:7-48; 6:1-20; 7:16-20, 24-27; 9:13; 12:33; 13:8, 23; 18:21-23 a 35; 19:19; 22:34-39; 24:12-13; 25:34 até o fim); Marcos (4:18-20; 11:13-14, 20; 12:28-35); Lucas (3:8-9; 6:27-39, 43 até o fim; 7:47; 8:8, 14–15; 10:25-28; 12:58-59; 13:6-10); João (3:19, 21; 5:42; 13:34-35; 14:14-15, 20–21, 23; 15:1-8, 9–19; 21:15-17). Estas coisas e outras semelhantes são as que foram aqui significadas quando os varões de Sodoma, isto é, os que estão no mal (n. 2220, 2246, 2322), disseram a Ló: “Um vem para peregrinar e julgará julgando?”, isto é, ‘os que têm outra doutrina e outra vida nos ensinarão?’


